Título original: The Brave One
Ano: 2007Direção: Neil Jordan
Roteiro: Roderick Taylor (argumento e roteiro), Bruce A. Taylor (argumento e roteiro), Cynthia Mort (roteiro)
Gênero: Ação/Drama/Policial/Suspense
Origem: Austrália/Estados Unidos
Duração: 119 minutos
“Sou Erica Bain e, como vocês sabem,
eu ando pela cidade. Eu me queixo, reclamo, mas eu ando, observo e escuto. Sou
testemunha de toda beleza e feiura que está desaparecendo da nossa adorada
cidade.” Erica Bain, personagem de Jodie Foster em The Brave One (2007).
Não se trata de uma leitura que eu
tenha feito recentemente, mas bem me lembro que, no imortal romance de Jostein Gaarder – cujas vendas somam
mais de 30 milhões de exemplares pelo mundo –, a jovem personagem Sofia
Amundsen se exalta quando o seu misterioso tutor lhe questiona sobre a
possibilidade de tirarmos do nosso caminho aqueles que, por ventura, nos façam
mal (com perdão por eu apresentar a minha memória como única referência). Não é
pra menos. Vivemos em uma sociedade na qual o famigerado “olho por olho, dente
por dente” foge aos seus princípios éticos. Não obstante, a “vida real” consta
de uma miríade de casos em que esse princípio ético é posto de lado, ocorrendo,
dessarte, o prejuízo ou mesmo a morte àqueles que outrora hajam ou não atuado
como algozes do seu então “vingador”. Valente
– sofrível tradução de The Brave One
(2007), de Neil Jordan – nos proporciona uma boa trama para a discussão deste
tema.
Erica Bain (Jodie Foster) é locutora do programa “Street Walk”, na fictícia rádio WNKW. Ela leva uma vida comum, gostando do que faz e amando o enfermeiro David Kirmani (Naveen Andrews), com quem está prestes a se casar. Os planos e a vida comum de Erica, no entanto, sofrem um baque quando ela e o noivo são gratuita e brutalmente agredidos por três marginais, ocorrência que põe fim à vida de David e marca decisivamente a de Erica, que, o telespectador bem sabe, jamais será a mesma. O telespectador de Valente, aliás, sabe de muita coisa. Lendo a sinopse do filme antes de assisti-lo, ele já sabe, por exemplo, que ali não há nada realmente novo: uma mulher, tendo abaladas as suas estruturas, alimenta uma sede de vingança que, ao longo do filme, levará às últimas consequências.
Valente, no entanto, pode e deve ser
qualificado como um bom filme, a despeito dos clichês e por inúmeras razões,
sendo a principal delas o fato de Neil Jordan haver sido um mestre em contar
uma velha estória dando-lhe ares de inédita, utilizando-se de elementos
simples, porém significativos, como, por exemplo, a excelente trilha sonora da
qual Dario Marianelli ficou incumbido. As cenas de suspense, de violência e de
profundas reflexões de Erica acerca do ocorrido e daquilo em que está se
tornando são embaladas por instrumentais que levam o telespectador às sensações
provavelmente pretendidas por Jordan. As mencionadas reflexões de Erica, aliás,
são um importante elemento: não temos aqui apenas um filme de violência –
embora seja ela, naturalmente, o seu ponto forte –, mas, também, um filme sobre
a profunda transformação de uma mulher, que, após um ataque brutal, não mais
consegue adaptar-se à trivialidade; tampouco, e com razão, consegue ver o mundo
– e, em especial, Nova Iorque – como um lugar seguro. Nesse âmbito, vale
ressaltar que a mudança pela qual Erica passa não é assim tão brusca – o que, caso
contrário, o seria em detrimento do senso de realidade da obra –, visto que, já
no início do filme, nos é apresentada uma personagem de natureza reflexiva,
introspectiva e censora; uma personagem inconformada com as estimáveis
características que estão desaparecendo de sua “adorada cidade”. O que temos, portanto,
é uma Erica acostumada a reagir à própria insatisfação – a princípio, com sua
expressiva escrita; mais a diante, com a violência.
Destaque para a cena da abordagem dos
bandidos, que exigem nervos de aço do telespectador que, até então guiado por
uma estória leve, experimenta agora a desumanidade de três desconhecidos que,
por diversão, agridem impetuosamente dois jovens de bem, cheios de vida, amor e
planos. Naturalmente, levar o espectador ao asco com esse tipo de cena não é
mérito de Jordan, visto que qualquer tabloide consegue isso, todos os dias, na
vida fora das telas. Tal estratégia é, no entanto, pertinente ao objetivo do
diretor, que é, naturalmente, justificar as atitudes posteriores da mocinha,
levando o telespectador a manter-se do lado dela. Destaque também para as cenas
que vemos na sequência, que são uma alternação entre as imagens dos cuidados ao
corpo ferido de Erica no hospital e as cenas de David distribuindo carícias pelo
mesmo corpo. Isso poeticamente embalado por “Answer”, de Sarah Mclachlan.
Outro
momento que merece destaque é quando a heroína, disposta a tentar continuar a
seguir com sua rotineira vida, faz, em seu programa de rádio, uma narração que
se faz interessante por refletir, com fidelidade, o sentimento de inúmeras
vítimas e familiares de vítimas da violência nas grandes cidades, e isso é mais
um ponto que “avisa” ao telespectador que, ao assistir a Valente, ele não está, definitivamente, diante de nada surreal, mas
palpável, bem próximo de si.
“Nova
York, a cidade grande mais segura do mundo. Mas é horrível... temer o lugar que
um dia você amou. E ver uma esquina que você conhecia tão bem e ter medo de sua
sombra. Ver degraus familiares e ser incapaz de subir. Nunca entendi como as
pessoas podiam viver com medo. Mulheres com medo de ir para casa sozinhas.
Pessoas com medo de pó branco em suas caixas de correio, da escuridão e da
noite. Pessoas com medo de pessoas. Sempre achei que eram os outros que sentiam
medo. Pessoas mais fracas. O medo nunca me atingia. E então, ele atingiu. E
quando ele atinge, você descobre que ele estava lá o tempo todo, esperando, sob
a superfície de tudo aquilo que você amava. Você sente a pele formigando, seu
coração adoece e você olha para a pessoa que um dia você foi, descendo a rua, e
você se pergunta se um dia voltará a sê-la.” Erica Bain, personagem de Jodie Foster em The Brave One (2007).
Erica
agora dorme ao lado do túmulo de seu amante, implorando-lhe uma palavra, e se
envereda por uma rotineira caminhada noturna, na qual visita, armada, os pontos
mais recônditos da cidade. À certa altura – anterior, aliás, à aquisição ilegal
da arma – Erica chega a procurar a polícia, pensando em deixar nas mãos dela a
solução para o seu caso. É quando nos é apresentada mais uma espécie de
justificativa para o que ela fará logo em seguida: a ineficiência da polícia,
da qual temos como pista a frase que o policial repete, religiosamente, a todos
que, desolados, recorrem a ele: “Certo, Sei que é difícil, mas se puder ter um
pouco de paciência e sentar ali. Logo mais, um policial virá ajudá-la.” Erica,
no entanto, não quer que a justiça seja feita por um processo moroso e que,
aliás, não lhe ira saciar a ira. Ela quer “fazer justiça com as próprias mãos”,
o que nos é reafirmado por duas cenas que veremos no decorrer do filme: i)
quando Erica desiste quando, na delegacia, está prestes a entregar-se à polícia
como a autora dos (merecidos?) assassinatos que estão acontecendo na cidade e
ii) quando colocada frente a frente com um dos assassinos, mesmo
reconhecendo-o, ela prefere não dizer à polícia, para poder realizar ela mesma
a sua vingança.
Vale
ressaltar que o telespectador-alvo do filme anseia por ver a mocinha – culturalmente
concebida como frágil e levada ao extremo do sofrimento após tornar-se vítima
da violência e perder o seu amado –, tomar ares de vilã e sair pela cidade a
fazer com que os algozes dos cidadãos de bem provem do seu próprio veneno. A
plena satisfação, no entanto, fica apenas para o telespectador, uma vez que
Erica – embora, provavelmente, experimente também uma espécie de prazer ao
cometer os assassinatos – sente-se cada vez mais vazia e culpada pelo “mal” que
vem provocando. Esta natureza controversa da obra nada mais é, no entanto, do
que uma estratégia – muito boa, por sinal – utilizada por Jordan para que o
telespectador chegue a uma reação catártica sem, no entanto, deificar a heroína
pelos seus atos, o que seria, penso, como legitimar a própria violência.
Destaque,
neste ponto, para um diálogo entre Erica e a aparentemente dura – porém
compreensiva e conhecedora da dor e conflito interno vividos pela protagonista
– Josai (Ene Oloja), quando essa se depara com Erica assentada nos degraus à
frente da sua casa, fumando angustiada e disparadamente.
“– Não
devia fumar. Isso vai matar você.
– Não
me importo.
– Há
muitas formas de morrer. Mas é preciso achar uma forma de viver. E... isso é
difícil.” The Brave One
(2007).
É
quando Erica encontra uma forma não de viver, mas, sim, de suportar a vida de
agora, carente de Jason e da paz de outrora, “porque, quando você ama algo,
toda vez que um pedacinho dele se vai, você perde um pedacinho de si próprio.”
Erica, então, havendo-se perdido por inteiro, agora anda pela cidade colocando
em sua mira todos aqueles que perturbam a paz alheia, se fazendo algozes de
outrem.
Neste
ponto da trama, já temos a presença do Detetive Mercer (Terrence Howard), que
investiga as misteriosas mortes na cidade, desconhecendo, a principio, que o
temido – ou adorado – “justiceiro” está por trás de toda a simpatia daquela
mulher. Essa dupla, aliás, é a responsável por grande parte das reflexões sobre
justiça, ética e assassinato do filme. Tomemos como exemplo a sena em que,
cedendo uma entrevista à Erica, o detetive lhe conta sobre o Sr. Murrow, dono
dos estacionamentos da Ilha Roosevelt. Ao ser questionado por ela se nada havia
a ser feito quanto a isso, o detetive, arrependendo-se em seguida, responde não
haver nenhuma solução que fosse legal. Na sequência, Erica pergunta ao detetive
se suas mãos haviam tremido nas ocasiões em que teve que matar alguém e esse
responde negativamente, colocando isso como a vantagem de estar do lado certo.
Temos
aí a explanação de dois lados com algo importante em comum. Ou seja: o hábito
de executar o outro como forma de fazer justiça. Não obstante, defende-se haver
um lado certo e um lado errado, embora ambos existam em prejuízo à vida humana.
Jordan nos traz tal reflexão de maneira magistral. Havendo levado o
telespectador-modelo a torcer pelo sucesso da protagonista em seu plano de
vingança, leva-o, em seguida, a questionar a atitude da mesma e adentrar, a
partir disso, numa série de questionamentos: se não seria correto torcer pela
protagonista, dever-se-ia de fato torcer pelo detetive? Haveria mesmo alguma
circunstância em que tentar contra a vida humana fosse uma atitude legítima?
Será que a polícia age mesmo eticamente, e, se sim, em que se baseia esta
ética?
Entre
os ouvintes do programa “Street Walk”, as opiniões a respeito se dividem tal
como entre os telespectadores de Valente.
Um primeiro defende a ação do “vingador” como um favor à sociedade. Um segundo
defende que, ao decretar a morte de outrem sem julgamento, o justiceiro se
iguala às pessoas que ele mata. Um terceiro menciona o prazer que nos
proporciona ver os algozes da sociedade serem punidos com a morte.
Enfim,
esses e outros debates surgem na tela enquanto vemos Valente, o que, nas mãos de Jordan, não anula a possibilidade de um
desfecho razoável para a mocinha, possibilitado, naturalmente, por Mercer, que
parece haver cultivado um certo fascínio pela moça. Assim, ao final da trama, o
afeto, o cuidado e a compreensão da dor alheia se sobrepõem a qualquer ética,
tornando-se o último bandido restante objeto de um combinado entre Erica e
Mercer. Seria certo? Não sabemos, mas sabemos que estamos tratando de um filme,
que encontrou neste final um quase equilíbrio entre a satisfação do expectador
e o comprometimento com a ética. Digo isso porque, mesmo havendo um final
favorável à protagonista, não se pode falar ainda em “final feliz”, visto
sabermos que, a despeito de qualquer coisa, Erica seguirá carregando as marcas
da violência sofrida e da perda do noivo, tal como ela própria avisa no encerramento
da trama. “Não há como voltar a ser aquela outra pessoa. Voltar àquele outro
lugar. Essa coisa, essa pessoa estranha... é só o que você é agora.”
É isso.
Apesar de algumas falhas, Valente é
um excelente filme, principalmente por não se embasar tão somente no objetivo
de levar o telespectador à saciedade, enfatizando, também, questões éticas
inquietantes. Bem diferente do violento e raso Doce Vingança (2010) – regravação de A vingança de Jennifer (1978) chegado às telas três anos após
Valente –, a trama de Jordan é uma estória que faz pensar.
***
Publicado originalmente em CinePlayers.