“No dia em que não houver mais homens que se comovam perante a uma injustiça, acreditem, a vida neste planeta deixa de existir (...).” José Gualberto Gambier Costa, A garota da rua Guaicurus.
No fim da tarde de uma quarta-feira, 21
de maio de 2014, após sair do trabalho, estava eu seguindo pela passarela do
metrô do Gameleira, quando avistei um senhor a chamar a atenção dos transeuntes
para o que ele chamava de "o romance que eu escrevi". Havendo passado
sem dedicar muita atenção, somente quando estava próximo ao metrô, me vi
envolvido pela curiosidade, lamentando por não haver sido ela imediata: quem
era aquele senhor e o que teria escrito? Refleti quanto a todo trabalho
intelectual que é investido na produção de uma obra, bem como sobre as
dificuldades de ser escritor no Brasil enquanto tantos, sem muito esforço,
ganham dinheiro com sua literatura de massa.
Eis que dei meia-volta e conheci José
Gualberto Gambier Costa e o seu romance A
garota da rua Guaicurus. Adquiri a obra, conversei com o autor e ganhei
autógrafo, e confesso haver gostado da obra antes mesmo de haver dado início à
leitura, tal é o meu fascínio pelos mistérios e histórias que permeiam a velha
Guaicurus, localizada na zona boêmia belorizontina e famosa pelos hotéis que
abrigam parte da prostituição na cidade. Ademais, há alguns anos eu fiz a
leitura de Hilda Furacão (1991), de
Roberto Drummond (1933 – 2002), de modo que eu muito quis saber o que Gualberto
Gambier tinha a contar. Já havia sido contada a história da moça da alta
sociedade que, sem razões aparentes, decidiu viver na Guaicurus, acabando por conquistar
o coração de um padre. Do mesmo modo, já havia sido contada, desta vez na telinha,
a história do milionário que se apaixona pela garota de programa, inicialmente
contratada como acompanhante em compromissos sociais (Pretty Woman, 1990). Então, justamente por se tratar de um contexto
já desgastado, eu quis saber que estórias traziam aquelas páginas, afinal, gosto
de histórias ousadas; gosto de escritores que se dedicam a contemplar o lado
humano de indivíduos que a sociedade finge que não enxerga.
Fiz a leitura da obra e, em verdade,
pouco vi sobre a relação amorosa entre um homem e uma prostituta, me dando
conta de que o que Gualberto Gambier pretendia com aquele romance ia mais além,
atribuindo-lhe um caráter de denúncia e promovendo em suas páginas a redenção que
pouco ou nunca se dá na vida real. Isso, porém, é feito às vezes sem muito tato,
levando o leitor a se ver confuso em relação ao que realmente está sendo
narrado ali. Se à certa altura, para lá da metade da obra, tomamos conhecimento
das atrocidades que levaram uma jovem a se prostituir, a obra na íntegra nos deixa
em dúvida sobre se era ali mesmo que devíamos chegar, se era aquele o seu ponto
forte. Uma das razões disso é o fato de que a sociedade em torno dos
personagens centrais parece absurdamente libertária, o que leva o leitor a uma
certa dificuldade em dar crédito à estória contada por Gambier na voz do advogado
Mauro.
Narrado em primeira pessoa, o romance
nos apresenta Mauro – que, apesar de ser advogado, não raro se permite uma
escrita marcadamente influenciada pela linguagem oral (com o que Gambier
precisa ter maior cuidado...) –, cuja vida passa por uma transformação após ser
contratado pelo peculiar Arthur Matheus Manso, que, devido a uma doença
degenerativa que em poucos meses o levará a óbito, pretende deixar todos os
seus bens a uma jovem profissional do sexo da rua Guaicurus, por razões mais
nobres e mais grandiosas do que uma simples paixão. Aos poucos, a moça é
trazida ao nosso conhecimento, e, sendo o leitor um provável produto de uma
sociedade preconceituosa (tal como o sou eu), o caráter, a suavidade e a inteligência
da moça podem tornar a narrativa exacerbadamente inverossímil. Portanto,
estamos lidando com um romance a ser lido por um leitor que deve no mínimo
estar disposto a embarcar na narrativa sem preconceitos acerca do que não
conhece ou pensa que conhece.
Em torno desses personagens – o advogado
Mauro, o benfeitor Arthur e a “garota da rua Guaicurus”, não por acaso chamada
Angélica –, não há quem critique a atitude de um e a posterior paixão do outro.
Com exceção de uma colega do narrador, apenas mencionada durante o seu relato
(p. 29), não há quem aponte o dedo para as relações que se estabelecem. Nem
mesmo a mãe do narrador – de formação católica e firme na fé cristã aos setenta
e quatro anos de idade – torce o nariz para alguma das situações. A decisão do
professor Arthur de deixar os seus bens para uma garota de programa tem a total
anuência de sua irmã Alice, que, devido à carência de revisão, é chamada de
Clarice durante boa parte da narrativa (p. 47; 51). Tanta mente aberta não raro
torna inconcebível a narrativa, por melhor que fosse um mundo, de fato,
desprovido de preconceitos.
Talvez o autor devesse repensar a sua
estória e rever algumas situações narradas, bem como, em suas próximas
publicações, deixar para outro momento, fora do texto, homenagens tão diretas aos
seus conhecidos (p. 32-33).
Contudo, a despeito de algumas falhas, o
texto de Gualberto Gambier cumpre muito bem com o que, ao meu ver, é uma das grandes
funções da literatura: a denúncia. A indignação se reproduz no texto ficcional,
que acaba por fazer mais do que apenas entreter o leitor. A corrupção política,
o descaso dessa em relação à população, a ausência de planejamento urbano, a
omissão do Estado, a pedofilia na Igreja Católica, as atrocidades cometidas
contra milhares de pessoas no interior de um hospício em Barbacena... tudo é
corajosamente denunciado durante as noventa e oito páginas de A garota da rua Guaicurus. E assim,
entre realidade e ficção, temos uma personagem que, por trás de sua profissão,
esconde uma história trágica, e quer agora vingar a dor a qual os seus
antepassados foram submetidos. E o mais interessante de tudo é a forma como
Gualberto Gambier se utiliza de sua narrativa para comunicar o poder da
leitura!, o que é louvável. A literatura a favor da literatura.
A revisão, portanto, é necessária, visto
que entrar em defesa da leitura por meio de um texto sobrecarregado de falhas
estruturais, ortográficas e gramaticais pode ser ineficaz. A presença de erros
grosseiros como “estrupo” (p. 68), a aplicação do verbo “sodomizar” (p. 80), a
estranha divisão de capítulos etc. pressupõem que a obra não passou pelas mãos
de um revisor. E vale mencionar que o fato de Gualberto Gambier, naquela tarde
de quarta-feira, haver utilizado um carimbo para informar quanto a um pequeno
erro à linha 26 da página 13, quando, na verdade, há tantas outras falhas ao
longo do texto, revela que ele próprio não fez a revisão final da obra. E isso
é um problema.
José Gualberto Gambier Costa, porém, é
um escritor com futuro, com inquietações e estórias (e histórias) pululando na cabeça
e na alma. Um homem que, tal como o seu excêntrico personagem Matheus Manso,
enveredou pelos sinuosos, porém atrativos, caminhos literários após
aposentar-se. E, cidadão firme em suas convicções e escritor independente que
é, tem todo o mérito de um grande escritor. Quanto a mim, particularmente,
pretendo, tão logo possa, ler as suas outras três obras, bem como a quinta, que
está a caminho.
No que se refere ao A garota da rua Guaicurus, devo dizer que rotular uma obra como
horrível ou mesmo dizê-la espetacular me parece desrespeitoso para com quem a
gerou, pois se trata de qualificações desprovidas de uma real crítica, que é o
que qualquer escritor demanda em lugar de insultos ou elogios. Portanto, eis
aqui a minha crítica, e acrescento que vale a pena dedicar algumas horas (ou o
tempo que se fizer necessário) às linhas de Gambier, nas quais nos depararemos
com alguns problemas, sim, mas também e sobretudo com a redenção que só foi
possível na e pela leitura. Recomendo.
COSTA, José Gualberto Gambier. A garota da rua Guaicurus. Goiânia: Kelps, 2013.
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