sexta-feira, 11 de agosto de 2017

A Maldição das Fadas - Marcos Mota



Respiração suspensa. Olhos fixos nas páginas. Taquicardia e total encantamento. Foi assim que eu li os capítulos finais de A Maldição das Fadas, terceiro livro da série “Objetos de Poder”, de Marcos Mota, que, aqui, entre pequenos tropeços e grandes acertos, brinda os seus “Leitores de Poder” com mais uma obra fantástica! A intertextualidade e os muitos mistérios são o que a obra tem em comum com suas antecessoras, tendo, porém, algumas peculiaridades: constrói um relacionamento interracial sem dar a isso dimensões exacerbadas, empodera as personagens femininas sem querer ser feminista, trata de justiça e igualdade sem querer ser de esquerda, não raro fazendo críticas sutis (ou nem tanto) a tais movimentos ideológicos ou pelo menos aos discursos que os caracterizam. Não obstante, considerando a moral positiva predominante na narrativa, bem como a comum impossibilidade de se fazer arte sem um viés ideológico como base, nenhuma dessas peculiaridades se apresenta como um problema na obra. Pelo contrário, A Maldição das Fadas revela um autor de opinião e que sabe se valer de sua arte para transmitir aos jovens aquilo no que acredita.

A estória nos apresenta Aurora, cujo nome, em aparente contraste com o seu tom de pele, acaba por revelar uma metáfora belíssima: a mulher negra que se apresenta como a “aurora”, o despertar, o novo amanhecer de todo um povo. É notório um esforço por parte do autor em promover o feminino e a negritude, sem, no entanto, fazê-lo em demasiado, o que acabaria por exaltar supostas diferenças ou mesmo por legitimar as diferenças (sociais) lamentavelmente existentes no mundo real. No reino mágico de Enigma, existem diferentes raças, mas o tom de pele não figura como uma questão entre eles. Um recado louvável para as crianças do mundo aqui fora, onde não existem fadas, aqueônios ou anões: a cor da pele, definitivamente, não deve – ou pelo menos não deveria – ser uma questão.

O protagonismo feminino, porém, não se dá apenas pela personagem Aurora. A presença da grande maioria das personagens femininas tem caráter determinante na estória: a triste maldição que paira sobre as fadas é fruto não do entrave entre Lilibeth e Atoc, mas, sim, da maldade da manipuladora Valquíria; o Objeto de Poder dos aqueônios foi forjado por uma grande escritora de nome Emily; é notória a influência de Virgínia junto ao filho Pedro e ao marido Kesler; e, por fim, é extremamente significativa a presença de Isabela, que, com a sua maturidade e bom senso, está sempre chamando os apaixonados protagonistas de volta à razão. A atuação da personagem, aliás, se torna indispensável, uma vez que dá ao leitor alguém com quem se identificar, já que leva um certo tempo até que consigamos ter alguma empatia pelo casal formado por Aurora e Pedro.

E, ainda na temática da exaltação do feminino, é digna de aplausos a menção do preconceito do qual as mulheres normesas se tornaram vítimas graças à ignorância dos valeses, sendo acusadas de bruxas em razão do conhecimento que possuíam (p. 85). Uma clara referência a um triste episódio vivido no século XVII, com algumas reminiscências em outros momentos de nossa história. Na vida e na literatura, a ignorância sempre vitimando pessoas de bem.

Vale ressaltar a feliz ideia que Marcos Mota teve ao fazer uma intertextualidade com o tão recontado A Bela Adormecida, levando a personagem-título como que a “ressurgir” em A Maldição das Fadas positivamente às avessas. Aqui, a Aurora – nome atribuído à personagem no clássico da Disney, de 1959 – não é a delicada garota de traços europeus que, após espetar o dedo em uma roca de fiar, cai em um sono do qual só pode ser despertada por um beijo de amor verdadeiro. Pelo contrário, ela é a garota negra que tem em suas mãos o poder sobre a vida do amado. A menarca, metaforizada no conto de fadas em questão pelo sangue derramado ao contato com o pontiagudo objeto (vale pesquisar os inúmeros estudos já realizados sobre o tema), é abertamente expressa no terceiro livro da série “Objetos de Poder” em um escatológico trecho que reúne humilhação, vômito e menstruação (p. 33). Aqui não há um rei que, por não compreender a necessidade do sangramento, cria um manto de proteção em torno da filha, mandando para longe dela todas as rocas de fiar. Pelo contrário, há uma mãe ausente e uma avó, próxima apenas fisicamente. E, finalmente, o tal beijo de amor verdadeiro, em vez de despertar a princesa de seu sono profundo, na trama de Marcos Mota é capaz de levar o amado ao sono eterno. Enfim, são outros os obstáculos para a autorrealização de Aurora Curie, mais desafiadores e bem menos machistas por sinal.

Ainda investigando as relações com os contos de fadas, podemos observar também sutis referências à famigerada Chapeuzinho Vermelho, como, por exemplo, na cena em que o ferreiro Derik tenta avançar sobre a jovem fada recém-púbere (p. 132), tal como o lobo pedófilo que tenta “comer” a Chapeuzinho. Isso sem falar no tão procurado Manto de Lilibeth, clara referência ao capuz da adolescente do conto de fadas, representativo dos ciclos menstruais da mesma. Aqui, ao revestir-se com o manto carmesim, que acaba por envolver-lhe a cabeça com um capuz, Aurora é tomada pelo poder de mudar o curso das águas, conduzindo os seus amigos de volta a lugar seguro (p. 195). Tanto na obra de Marcos Mota como nas fábulas em que ele colheu, a transição da infância para a adolescência – fortemente marcada pela menstruação no caso das meninas – é apresentada como sendo importante, com a única e super significativa diferença de que, se nos contos de fadas mencionados as personagens-título mais parecem secundárias, todo o protagonismo é entregue à Aurora em A Maldição das Fadas. Aqui, a jovem não fica à mercê das circunstâncias, não é mera vítima da maldade da bruxa ou da lascívia do lobo, mas é ativa. Anseia pela Visão das Fadas, revelando ser consciente dos processos e transformações naturais característicos de sua raça. Segue, voluntariamente, pelos caminhos mais arriscados, e reflete, medita e opina sobre a própria condição. Essa é Aurora Curie!

Uma vez mencionado o Manto de Lilibeth, Objeto de Poder das fadas, vale ressaltar a aparentemente forçada relação entre ele e a maldição das fadas, que dá título ao livro, tal a ausência de elementos que expliquem que o resgate do Manto de Lilibeth reverteria a maldição lançada pela malvada Valquíria sobre aquele povo (p. 97-98). Ora!, o conhecimento do Povo Encantado fora materializado por Lilibeth no Objeto muito antes de qualquer maldição. Por que razão encontrá-lo quebraria uma maldição lançada por Valquíria? Neste ponto, aproveito para lamentar que Valquíria haja tido apenas uma pequena participação na história, nos registros dos antecedentes do Povo Encantado. Foi genial a criação de uma personagem tomada de toda uma amargura cuja a base é nada menos que o fato de não haver sido amada. E é quase certo que, para criá-la, o autor não tenha precisado ir muito longe, limitando-se apenas a observar algumas questões típicas das relações entre sogras e noras, ou mesmo entre mães e filhos homens... Oxalá em suas próximas obras Marcos Mota não ignore o valor e o poder de uma vilã feminina!

Outra coisa que não convence no contexto da obra é o suposto poder de persuasão possibilitado pela Pena de Emily. Considerando serem os aqueônios um povo treinado nas artes da linguagem, esperava-se que o descendente de tal raça, quando no uso do Objeto de Poder, se utilizasse com perspicácia do artifício da linguagem. O que se vê, no entanto, é nada mais que uma espécie de transe hipnótico oriundo de frases imperativas sem real complexidade. No episódio em que Pedro Theodor dialoga com Corvelho e seus guardas (p. 42), por exemplo, seria muito bem vindo o uso, pelo garoto, de alguma estratégia de linguagem que confundisse os seus interlocutores, não lhes restando outra saída que não fosse abrir passagem à família de aqueônios com a jovem fada. Aqui, o poder do Objeto não ficou tão bem construído quanto nas obras anteriores, o que não significa que não haja pontos altos no que tange à linguagem. São sempre bem construídas e instrutivas as conversas entre os aqueônios e a fada, durante as quais eles a ensinam sobre construção frasal (p. 75), metáforas (p. 106), fonética e fonologia (p. 103). Os professores de português agradecem.

Carente de profundidade nas questões humanas, o que se fez característico nos demais livros da série, A Maldição das Fadas marca o ingresso do outrora autor independente Marcos Mota na equipe de autores da Editora Lê. Ao meu ver, a obra não supera as suas antecessoras O Enigma dos Dados e O Cemitério dos Anões, permanecendo o Livro 2 na condição de meu predileto. A despeito disso, porém, o terceiro livro da série dá continuidade à saga dos povos de Enigma – desta vez trazendo, inclusive, um super mapa do Reino! –, que lutam pela manutenção do conhecimento em mãos incorruptíveis pela ganância. Mais uma vez, esse nobre mineiro de Muriaé mostra que não está na literatura de passagem, agora resgatando uma multidão de jovens de todo o país para a Literatura nacional, com a qual é plenamente comprometido e na qual tem o seu nome definitivamente marcado. Esse é Marcos Mota!

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MOTA, Marcos. A Maldição das Fadas. Belo Horizonte: Editora Lê, 2017.

Um comentário:

  1. Nossa Alex,
    Foi fantástico ler sua resenha! Passei o livro todo imerso em
    Enigma, mas ignorante a tanta coisa! Já havia amado os outros livros do autor. A sua resenha veio para, além de reforçar a minha admiração por ele, só reforça o meu orgulho pela nossa literatura, que vem quebrando tabus em meu coração!

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